Tudo indica que a lei que proíbe a pesca resultará na redução dos territórios dos ribeirinhos e no fim da pesca artesanal, favorecendo a construção de hidrelétricas, cujo principal empecilho reside justamente no conflito com a atividade
Por DANIELA MAIMONI DE FIGUEIREDO, publicado originalmente em OEco
Foto: Guilherme Giovanni
Como pesquisadora, tenho desenvolvido um trabalho em comunidades tradicionais de pescadores na bacia do rio Cuiabá, com o objetivo de compreender o modo de vida sustentável dessas pessoas, que está ancorado na pesca artesanal e resiste há muitas gerações. Ainda que preliminar, pois não finalizei a pesquisa, tenho constatado que todos os pescadores que entrevistei têm histórias, saberes e preocupações comuns. Dentre essas, destaco: todos eles nasceram, viveram e querem morrer em suas comunidades; todos têm segurança alimentar e renda, proporcionada pela pesca; todos pescam desde criança, por volta de 10 anos de idade; todos pescam quase todos os dias úteis, alguns inclusive nos finais de semana, entre 6-8 horas/dia; uma parte de seus filhos também mora nas comunidades e vive da pesca; todos conhecem profundamente o comportamento dos peixes, as variações anuais do rio Cuiabá, as baías, os corixos, os canais e outros ambientes da bacia; todos sabem que, após a hidrelétrica de Manso, houve redução de peixes no rio; e todos estão muito apreensivos com a possível construção de mais hidrelétricas e com a recente aprovação da lei estadual, que proíbe o transporte e a comercialização do pescado por cinco anos.
Elaborada pelo poder executivo e aprovada pelos deputados estaduais, esta lei contraria as evidências científicas e os saberes dos pescadores, quando situa, falsamente, a pesca artesanal como o único e principal fator de redução do estoque pesqueiro no rio Cuiabá. Nem pesquisadores nem pescadores foram ouvidos.
A lei irá afetar milhares de famílias que terão retiradas de si pelo Estado o direito ao trabalho e à segurança alimentar. Santo Antônio do Leverger e Barão de Melgaço são cidades que terão forte recessão econômica e empobrecimento da população, pois têm a economia ancorada, principalmente, na pesca. Isso sem falar dos outros segmentos, como pesqueiros, atravessadores e feirantes que revendem o peixe, e as milhares de pessoas que pescam esporadicamente por lazer (pesca difusa). Vale lembrar que a pesca na bacia do Cuiabá é importante em termos históricos, culturais, sociais e econômicos.
Segundo o governo, o intuito é aumentar o turismo de pesca e incluir os pescadores nessa atividade, permitindo somente o “pesque e solte”. Isso, mais uma vez, contraria os dados científicos e os saberes dos pescadores artesanais, que conhecem o quanto esse tipo de pesca é prejudicial aos peixes, muitas vezes os levando à morte. Além disso, grande parte dos pescadores tradicionais não têm interesse em deixar a pesca e trabalhar somente no turismo, como propõe o governo, pois perderiam a autonomia de trabalho que tanto prezam e estariam sujeitos à exploração, que, conforme alguns relatos, já vem ocorrendo. O Ministério da Pesca e Aquicultura se posicionou contra essa lei, pois entende que dar preferência à pesca amadora e esportiva e proibir a pesca artesanal viola a Lei Nacional da Pesca (Lei nº 11.959/2009).
Mesmo considerando que a lei Estadual prevê o pagamento de um salário aos pescadores nos três primeiros anos da proibição (a partir de janeiro de 2024), o salário não repõe a renda da pesca e não alcança os demais segmentos prejudicados. Um pescador me fez a seguinte pergunta, que vale destacar aqui: se o governo tem recurso para pagar os pescadores, por que não o aplica na melhoria e no fortalecimento da fiscalização e da gestão da pesca? Um exemplo de uma boa gestão da pesca, seria controlar e normatizar os incontáveis pesqueiros com tablados nas margens do rio Cuiabá, que adotam, irregularmente, a ceva dos peixes e, muitas vezes, desmatam a mata ciliar.
Todo este cenário indica que a lei resultará na redução dos territórios dos ribeirinhos e no fim da pesca artesanal, favorecendo a construção de hidrelétricas, cujo principal empecilho reside justamente no conflito com a pesca. Favorecerá ainda o mercado de peixes de piscicultura, que já é suficientemente robusto. Atualmente, já existe pressão para a saída dos pescadores de suas terras, principalmente na região do Pantanal, onde eles são constantemente pressionados para vendê-las para dar lugar às casas de veraneio de pesca e pousadas.
Fica muito evidente que há uma disputa pelo território das comunidades ribeirinhas, território que inclui tanto a terra ao longo do rio como o próprio rio Cuiabá. Não se trata somente de menosprezar o modo de vida sustentável e os direitos dessas comunidades, trata-se, principalmente, da apropriação dos recursos naturais (terra, água, peixes), que são o lar, a história, a cultura, o trabalho, o sustento e a vida das pessoas que vivem nessas comunidades tradicionais, para ganho e lucro de poucos.
Portanto, a proibição do transporte e comércio de peixes na bacia do rio Cuiabá está ligada, essencialmente, ao favorecimento de grupos hegemônicos em termos econômicos e políticos. Esses grupos costumam usar o discurso da sustentabilidade, porém na tomada de decisões, negam a ciência e desprezam um modelo de vida sustentável, que garante renda e alimento para milhares de famílias, mantendo o equilíbrio dos estoques pesqueiros no rio.
Acesse o texto no site O Eco.