O período de chuvas iniciou em outubro no Pantanal, mas de acordo com os especialistas as precipitações previstas não serão suficientes para encher a planície pantaneira. Ou seja, 2022 deve ser mais um ano sem inundações neste ecossistema que é regido por ciclo de cheias e secas.
Segundo o relatório do Mapbiomas, o bioma já perdeu 29% das suas superfícies de água nos últimos 30 anos. A maior área úmida continental do planeta está secando e as consequências colocam em risco a biodiversidade do ecossistema e das populações que dependem dos recursos naturais para sobreviver.
Neste cenário, não muito otimista, nós, do Observatorio Pantanal, conversamos com o Dr. Agostinho Catella, pesquisador da Embrapa Pantanal, para saber como os recursos pesqueiros do Pantanal respondem a esses anos recorrentes de seca. Pois, os peixes estão na base da cadeia alimentar do ecossistema pantaneiro, são a segurança alimentar de milhares de famílias e também mantém a cadeia econômica do setor do turismo de pesca.
Agostinho Catella é pesquisador há 34 anos da Equipe de Recursos Pesqueiros da Embrapa Pantanal. Chegou em Corumbá, MS, em 1987, período das cheias excepcionais. De forma didática, ele explica como a reprodução dos peixes está ligada diretamente aos ciclos de inundações, que certamente haverá uma redução dos estoques pesqueiros, é preciso gerir o recurso, e alerta para os impactos que a instalação de usinas hidrelétricas podem trazer para o Pantanal.
1 – Em 2019 tivemos uma pequena cheia no Pantanal, já em 2020 e 2021 não houve inundação. Esta variação interfere na reprodução dos peixes?
Certamente e muito! Se temos pouca água, teremos pouco peixe. Para entender melhor, é preciso conhecer o ciclo de reprodução dos peixes e a dinâmica das águas do Pantanal.
Como as enchentes são fenômenos climáticos regulares e bastante previsíveis, os “peixes de piracema” se adaptaram para tirar maior partido desse fenômeno ao longo do tempo evolutivo. Importante ressaltar que os peixes mais carismáticos para a pesca no Pantanal são peixes de piracema, como, por exemplo, dourado, pacu, pintado, cachara, jaú, piavuçu e etc.
No Pantanal, nós temos uma estação de chuva concentrada em três meses, ao Norte e ao Leste. Então, essa grande quantidade de água caindo de forma concentrada, em um prazo curto, enche os rios e eles extravasam. Quando essa onda de enchente chega na planície pantaneira, em função da baixa declividade, a água escoa lentamente de modo que temos grande áreas alagadas por longos períodos. Então, essa planície se torna um lar de alimentação e crescimento para os peixes. Quanto maior a área inundada e quanto mais tempo a água permanecer nesses campos inundados, melhor para os peixes.
Durante as cheias, os peixes saem da calha dos rios e vão se alimentar nas áreas alagadas. Como a água escorre devagar, os peixes têm tempo para se alimentar e engordar. Acumulam reservas nutritivas e gordura, e quando começa a vazante, os peixes voltam para a calha dos rios, deixando a área inundada que está secando, se organizam em cardumes e começam a migrar rio acima e podem nadar centenas de quilômetros por meses.
Quando chegar na cabeceira do rio, eles estarão magros, pois a gordura e os nutrientes foram utilizados na migração e no amadurecimento dos óvulos dos peixes, fazendo uma grande e maciça desova, concluindo o processo de reprodução. Assim, as áreas de alimentação e crescimento estão nas planícies e as áreas de reprodução nas cabeceiras, no planalto. Por isso a necessidade de manter as rotas migratórias livres para que os “peixes de piracema” possam completar o seu ciclo de reprodução.
Em 2020 e 2021 o rio não saiu da calha, poucos peixes vão amadurecer suas gônadas para fazer a migração rio acima. A tendência é que em anos mais secos haja uma menor quantidade de peixes amadurecendo os óvulos, realizando a migração e um menor números de ovos sendo colocados, eclodindo e vingando, resultando em uma menor reposição dos estoques. Ano mais seco implica em redução natural das populações.
Em 1974 iniciou um período de cheias grandes e excepcionais, que durou até 1997. Se observarmos, vamos perceber que foi também neste período que se instalou o setor do turismo pesqueiro no Pantanal. Não foi uma mera coincidência, é porque tínhamos uma abundância de recursos e o Pantanal ganhou fama pela piscosidade.
É muito importante ter claro que, se entrarmos em um ciclo de pequenas cheias o ambiente terá uma menor capacidade de suporte para manter as populações de peixes. É um fenômeno normal, então nós precisamos pisar no freio na hora de utilizar esse recurso.
2 – A seca que estamos vivenciando no Pantanal é um fenômeno natural ou pode estar sendo ocasionada pelas mudanças climáticas?
Nós podemos estar entrando em um período mais seco, que é um fenômeno natural, mas que pode estar sendo afetado também pelas mudanças climáticas. Mas penso que talvez os climatologistas ainda não conseguiriam separar os efeitos do que é natural e do que seria consequência do aquecimento global.
Nós tivemos um ciclo de seca muito dramático na década de 60. Entre 1964 e 1973, foram 10 anos em que o rio Paraguai não extravasou para a planície, não houve cheia. Certamente, já havia um começo de aquecimento global, mas muito inferior ao atual. Este não é um fenômeno que está relacionado somente ao Pantanal, está ligado ao ciclo de chuvas de uma macrorregião. Se aqueles 10 anos se reprisarem, nós teremos um período mais seco. Estamos sujeitos a ter outro ciclo de seca com baixa produção natural de peixes, se alternando com novos ciclos de grandes cheias com aumento da produção pesqueira, como já ocorreu no passado.
O desafio atual é que hoje nós temos uma demanda muito maior por recursos do ambiente do que existia na década de 60. Nós temos uma quantidade maior de pescadores profissionais artesanais, um setor turístico pesqueiro que não existia naquela época, uma pesca de subsistência muito mais intensa. Sem falar nas perdas ambientais como desmatamentos, assoreamento dos rios e aumento dos níveis de poluentes que ocorreram de lá para cá. Naquela época também não havia nenhuma usina hidrelétrica na Bacia, hoje existem 47. Estamos em um momento muito mais sensível, porque o aumento da população mundial tornou o homem muito mais dependente do ambiente do que estava na década de 60.
3 – Segundo os especialistas, estamos vivenciando as mudanças climáticas e o que precisamos agora além de conter o aumento da temperatura é buscar alternativas de adaptação. Há alguma ação já em discussão?
A administração da pesca é complexa, porque temos vários atores com perfis socioeconômicos diferentes, com diferentes expectativas e com diferentes níveis de acesso às esferas de decisão do poder. Temos o pescador profissional artesanal, pescador amador, setor turístico pesqueiro, populações tradicionais, pescador de subsistência e piscicultores.
Administrar a pesca em um período de abundância é relativamente mais fácil do que gerir em um período de maior restrição. Neste momento mais seco, em que a produção natural dos estoques pesqueiros deve diminuir, a melhor forma de buscar soluções e tomar decisões é por meio dos Conselhos de Pesca e os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul têm seus conselhos formados. O Conselho de MS não é convocado desde 2006 e o de Mato Grosso voltou a suas atividades.
É um momento delicado e urgente, porque também há propostas de instalação de novas usinas hidrelétricas que poderão afetar diretamente os recursos pesqueiros.
4 – Quais os outros fatores externos que colocam em risco os estoques pesqueiros dos rios no Pantanal?
Como já havia mencionado, uma grande ameaça são os empreendimentos hidrelétricos. Atualmente, tomando como referência março de 2017, há 47 usinas hidrelétricas instaladas ou em fase de construção nos rios que alimentam o Pantanal, isso já causou impacto sobre os estoques pesqueiros. E, estão propostas mais 133 usinas.
Participamos de um grande estudo¹, contratado pela Agência Nacional de Águas e saneamento Básico – ANA de 2016 a 2020, sobre os impactos potenciais desses novos empreendimentos. Na “Análise Integrada” dos resultados, identificamos que 30% dos 133 empreendimentos previstos estão na “área vermelha” do mapa de compatibilização dos usos da bacia, isto é, sobre as principais rotas de migração dos peixes. Para chegar nessas informações foram realizados estudos, durante dois ciclos reprodutivos completos, em todas as sub-bacias onde há empreendimento previstos, para identificar as principais rotas migratórias.
Se as usinas forem construídas nessas áreas, a migração reprodutiva dos peixes de piracema será interrompida, as populações de peixes irão reduzir dramaticamente para todos os atores e modalidades de pesca e para as funções ecológicas que os peixes desempenham no ambiente. Se analisarmos o mapa, 69% das usinas estão na “área verde”, ou seja, áreas classificadas como “não estratégicas” para os usos múltiplos, pois não são rotas migratórias prioritárias nas sub-bacias.
É importante dizer que, por exemplo, se construir uma usina na sub-bacia do Taquari ela será a primeira impactada, mas esse impacto também vai repercutir nas demais. O peixe tem algum nível de fidelidade à sub-bacia em que ele nasceu, mas a gente não sabe o quanto. Felizmente os estudos foram realizados e as informações estão disponíveis para sociedade.
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1 – Estudos de Avaliação dos Efeitos da Implantação de Empreendimentos Hidrelétricos na Região Hidrográfica do Paraguai e para Suporte a Elaboração do Plano de Recursos Hídricos, financiado pela Agência Nacional de Águas – ANA. No qual Agostinho foi coordenador do tema Ictiofauna e pesca.