O artigo que você vai ler abaixo foi escrito por Silvia Santana Zanatta, que tem como título: Represas na BAP: monitoramento da legislação ambiental brasileira se torna estratégico diante do cenário de ataque que o território vive
O evento antrópico que mais tem chamado atenção nas últimas décadas é o movimento de expansão da exploração dos recursos hídricos da bacia para a geração de energia. Nos últimos anos a construção de represas na parte alta da Bacia do Alto rio Paraguai (BAP) está se proliferando, promovendo uma expressiva alteração dos sistemas hídricos e, em consequência, do funcionamento biológico natural do Pantanal.
Atualmente são 52 usinas em operação, sete delas Usinas Hidrelétricas (UHE), 26 Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH), e 19 Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGH). A presença de 52 represas num sistema como a BAP, já é um fato que exige muita atenção coordenada.
Não fosse só os empreendimentos em operação, temos também, para agravar ainda mais a situação, os projetos em fase de construção e em fase de estudos. No total, são 101 projetos. Em poucas palavras, o impacto sobre o sistema hídrico, fauna e flora e populações humanas nativas, urbanas e rurais, já é significativo, com novas obras, ganhará uma escala muito maior.
A questão energética brasileira e o papel da BAP
Para dimensionar a estrutura e as implicações sistêmicas da problemática, importante nos localizarmos sobre a representatividade da BAP dentro da matriz de produção de energia do país.
O Brasil depende fortemente da produção de energia proveniente de empreendimentos hidrelétricos, desprezando outras opções atuais de energia limpa, como a eólica e a solar. Essa dependência é justificada por discursos oficiais. No Brasil, empreendimentos hidrelétricos, respondem por 63,89% da capacidade total instalada do país, calculada em 164,03 mil kilowatts (KW). De acordo com o ‘Banco de Informações de Geração’ da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, os 1.341 empreendimentos de geração hidráulica instalados no território nacional têm capacidade de gerar 108,46mil KW. A aposta do país nessa matriz geradora de energia e a desatenção estratégica a outras fontes fica nitidamente detectada.
O Sistema de Informações do Potencial Hidrelétrico Brasileiro, desenvolvido pela Eletrobrás, armazena e processa informações sobre estudos e projetos de usinas hidrelétricas. Ele informa (SIPOT, 2019) que o potencial hidrelétrico brasileiro, tecnicamente explorável, é da ordem de 260 GW. O potencial técnico de aproveitamento da energia hidráulica do Brasil está entre os cinco maiores do mundo, pois o país tem 12% da água doce superficial do planeta. Esses dados vêm sendo usados em propaganda para naturalizar a ideia de que o Brasil tem o dever de barrar seus rios para produzir mais energia. Nosso argumento é que há fontes alternativas, e que a energia produzida é insignificante. Além disso, que o impacto ambiental é mais danoso que o suposto ganho.
De todo o potencial hidrelétrico de 260 GW, 42,2% estão localizados na Bacia Hidrográfica do Amazonas. A Bacia do Alto rio Paraguai detém 1,2% deste montante. É um percentual baixíssimo de oferta de produção de energia, comparando-se essa produção com os impactos que a exploração hídrica da região geraria.
Impactos estes que vem sendo naturalizado discursivamente, fundado em argumentos como a irreversibilidade do desenvolvimento ou a função estratégica da geração de energia “limpa” frente a um suposto mercado internacional. Esses argumentos, comuns desde a década de 1940, dependem de uma resposta significativa à pergunta: os números da energia gerada, justificam essa proliferação viral de empreendimentos? Na representação a seguir vemos o volume de energia gerado na BAP, em relação ao montante geral de energia hídrica hoje produzida no Brasil. A resposta é negativa. Observemos:
O quantitativo de produção de energia é irrisório, comparado ao quadro nacional. Na BAP há 52 empreendimentos em operação, apenas 3,87% dos empreendimentos do país, produzindo 1.192,87KW. A BAP é responsável pelo número de 0,70%, menos que 1% da geração total de energia hídrica brasileira. Esta informação mostra como esse território não é estratégico para esta atividade, e que a suposta aceleração do desenvolvimento do Brasil não depende desta geração “local”. Estes são os números do montante. Há mais.
Na análise dos números quanto ao tipo de empreendimento, detecta-se a mesma insignificância perante o desenho geral da produção nacional. Observando as UHEs (como demonstra o quadro abaixo), causadoras dos impactos mais relevantes quando instaladas, observamos que das 217 unidades em operação no Brasil, sete estão na Bacia do Alto rio Paraguai. O total de energia gerada no país a partir delas é de aproximadamente 103 mil KW. Por conseguinte, o número produzido no território estudado é menor que 0,5%.
A situação se repete na análise da produção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) e de Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGH). Noutros termos, os dados mostram que os prejuízos causados à região não são justificados pelo argumento do aproveitamento hidrelétrico fixado.
Desta forma, percebe-se que há uma estrutura clara de irrelevância da produção, frente ao discurso oficial. A irrelevância dos números é uma tendência a todo o espectro dos empreendimentos. Nem as UHE, nem as PCHs, nem as CGHs apresentam números que justifiquem a intrusão sobre os sistemas ambientais (isto é, naturais, humanos e não-humanos).
Das fontes de produção hídrica acima, a que ainda possui significância em quantidade de unidades e potência gerada, relativamente ao território, é a Pequena Central Hidrelétrica. Esses empreendimentos representam 0,24% da produção nacional, um número também irrisório, mas o maior, em todo caso, comparado a outros empreendimentos. Acontece que as PCHs são os empreendimentos mais agressivos para a BAP. Estes empreendimentos são autorizados a partir do argumento que são fontes limpas de geração de energia, causando impactos ambientais insignificantes. Esse discurso se fortalece e se naturaliza quando, por exemplo, o governo e empresas privadas comparam PCHs a grandes usinas nucleares. Esse tipo de discurso deve ser visto criticamente, pois não existe energia limpa (Bermann, Veiga e Rocha, 2004). Todas as fontes de energia produzem impacto. O problema é monitorá-lo.
Além do mito da produção energética limpa, outra estratégia discursiva utilizada pelo estado para naturalizar a ideia da importância estratégica da BAP no quadro de produção energética do Brasil é a chamada eletro-estratégia, uma analogia proposta por Ralph M. Albuquerque (2012), comparando com a ideia de agro estratégia. Trata-se de uma estratégia discursiva comum no setor energético e no agronegócio, para capturar benefícios. Um movimento que explicita bem esta similaridae, engrossando a pungência do argumento da inevitabilidade do desenvolvimento, é a falácia da “crise na produção de alimentos” para o agronegócio, paralelamente à “crise energética”, no setor energético. O conceito chave de “apagão” foi saturado pelos agentes discursivos (oficiais de governo, mídia, acadêmicos) para justificar a proliferação de empreendimentos hidrelétricos na BAP. E para sequestrar facilidades, encontramos programa como o de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), instituído pelo Decreto no 5.025, de 2004, onde oferta-se benefícios para os empreendedores como o financiamento estatal de até 80% do empreendimento (pelo BNDES); a compra de energia assegurada pela Eletrobrás; a isenção do pagamento de Uso de Bem Público – UBP, e a isenção de compensação aos estados e municípios pelo uso de recursos hídricos, entre outras oportunidades. Tudo isso poderia ser sustentado por uma projeção de baixo impacto ambiental e por números robustos de eficiência de produção, o que não é o caso, como mostrado acima.
Proposições legais que podem agravar ainda mais o quadro de degradação ambiental
A legislação referente às questões ambientais foi criada com o objetivo de disciplinar o uso dos recursos naturais: a água, o solo, as florestas, o ar e os animais. Como instrumento da política ambiental para a solução dos problemas ambientais decorrentes do desenvolvimento da atividade do homem, a legislação, como agente de conscientização ambiental, é uma ferramenta muito eficaz.
A legislação ambiental no controle do uso dos recursos naturais, pode ser considerada um dos principais meios para proteção e conservação do ambiente. Mas, torna-se necessário voltar a atenção para o fato de que, principalmente nos últimos anos, a pressão para a flexibilização destes instrumentos legais tomou contornos perigosos, daí a necessidade real e urgente do desenvolvimento de trabalhos alicerçados no compromisso de defender as políticas, hoje identificadas como balizas para as tomadas de decisão, assim como se posicionar contrariamente a criação de instrumentos nocivos ao ambiente. Para tanto, o monitoramento constante dos ambientes políticos é uma etapa essencial para leituras de conjuntura, antecipação de cenários e criação de estratégias.
Pensando a partir desta logica, de mapear e monitorar para indicir quando necessário e, com base na problemática das represas na BAP, foi feito este apanhado geral de possíveis mudanças legais e novas proposições de leis que uma vez efetivadas potencializam os problemas existentes e colocam o território numa situação de ainda mais vulnerabilidade:
Lei Federal | LEI Nº 9.433/1997 | Lei de Recursos Hídricos – Institui a Política e o Sistema Nacional de Recursos Hídricos – Define a água como recurso natural limitado, dotado de valor econômico. Prevê também a criação do Sistema Nacional para a coleta, tratamento, armazenamento e recuperação de informações sobre recursos hídricos e fatores intervenientes em sua gestão. Ameaçada pelo PL 4546/2021 |
Projeto de Lei – Federal | PROJETO DE LEI Nº 2159, DE 2021 | Dispõe sobre o licenciamento ambiental; regulamenta o inciso IV do § 1º do art. 225 da Constituição Federal; altera as Leis nºs 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, e 9.985, de 18 de julho de 2000; revoga dispositivo da Lei nº 7.661, de 16 de maio de 1988; e dá outras providências. Estabelece normas gerais para o licenciamento de atividade ou de empreendimento utilizador de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidor ou capaz de causar degradação do meio ambiente. Tramita pelas Comissões do Senado Federal |
Projeto de Lei – Federal | PROJETO DE LEI N° 2918, DE 2021 | Dispõe sobre compensação financeira à União, Estados, Distrito Federal e Municípios pelo resultado da exploração de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica, altera as Leis no 7.990, de 28 de dezembro de 1989, no 9.648, de 27 de maio de 1998, no 8.001, de 13 de março de 1990, e dá outras providências. Plenário do Senado |
Projeto de Lei – Federal | PROJETO DE LEI Nº 2925, DE 2021 | Altera a Lei nº 12.114, de 9 de dezembro de 2009, para permitir a aplicação de recursos do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima na implantação de Centrais Geradoras Hidrelétricas com Capacidade Instalada Reduzida. Proposição Sujeita à Apreciação do Plenário da Câmara de Deputados |
Projeto de Lei – Federal | PROJETO DE LEI Nº 4546, DE 2021 | Institui a Política Nacional de Infraestrutura Hídrica, dispõe sobre a organização da exploração e da prestação dos serviços hídricos e altera a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, e a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000. Aguardando Despacho do Presidente da Câmara dos Deputados |
Lei Estadual – MT | LEI Nº 8.830/2008 | Dispõe sobre a Política Estadual de Gestão e Proteção à Bacia do Alto Paraguai no Estado de Mato Grosso e dá outras providências. Em partes, ameaçada pelo PL 03/2022 |
Projeto de Lei – MT | PROJETO DE LEI Nº 03/2022 | Altera dispositivo da Lei nº 8.830, de 21 de janeiro de 2008 que dispõe sobre a Política Estadual de Gestão e Proteção à Bacia do Alto Paraguai no Estado de Mato Grosso e dá outras providências. Prevê facilidades para plantio de soja e instalação de Centrais Geradoras de energia na BAP |